Do estigma para o mercado: O desafio de trabalhar sendo migrante em Boa Vista
- ranioralmeida
- 15 de ago.
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Nos últimos anos, Roraima tem sido uma rota de passagem e ponto de fixação para migrantes de diferentes países
Por: Juliana Soares e Yasmin Tavares

O estado de Roraima passou por diversos processos de migração, como uma parte do período de sua história em que foi marcada pela vinda de famílias da região Nordeste em busca de melhores condições. Nos últimos anos, o estado recebeu migrantes e refugiados de diferentes países, em busca de moradia ou utilizando-o como uma rota de passagem para outros estados no país.
Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), o Brasil recebeu cerca de 68.159 pedidos de reconhecimento para situação de refugiados no ano passado, apresentando um aumento de 16,3% com relação ao ano anterior. Ainda de acordo com as informações divulgadas, em 2024 os principais requerimentos do tipo foram feitos por venezuelanos, seguido dos cubanos e angolanos. Outras nacionalidades como indianos e vietnamitas também apresentaram números expressivos.

Iniciada por volta de 2015, a vinda de haitianos registrou seu recorde no ano de 2019, fugindo de uma realidade de crise econômica, conflitos políticos, desastres ambientais, entre outros. Era possível notar suas presenças em vendas informais de produtos em calçadas pelo centro da cidade, mas principalmente na venda de picolés, atravessando ruas e bairros a pé.
Entre os cenários migratórios que cercam o estado, a grande migração venezuelana em massa iniciada por volta de 2015 e intensificada em 2017, se tornou um marco do fenômeno migratório em Roraima. Nesse caso, o estado se tornou principal porta de entrada para pessoas que fugiam da crise política e socioeconômica que se agrava no país vizinho.
A inserção de muitas dessas pessoas no cotidiano social da cidade de Boa Vista trouxe conflitos. Reclamações e rechaço ao acesso dos migrantes a serviços básicos oferecidos gratuitamente se dispersaram nas ruas e na internet. Situações de preconceito foram e continuam sendo comuns, o que atrapalha diversos migrantes que buscam emprego na cidade.
Caminhos para o acesso ao trabalho formal
De acordo com dados disponibilizados pelo Governo de Roraima, entre os anos de 2021 e 2022, o estado apresentou um crescimento na contratação de profissionais migrantes, com cerca de 15.000 pessoas sendo admitidas em novos empregos. Essas informações indicam um crescimento da participação de migrantes no mercado de trabalho brasileiro.
Uma das formas de integração no trabalho em Boa Vista é realizada pela Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social (SETRABES), que oferta diversos serviços para encaminhar o migrante para a profissionalização.
O Sistema Nacional de Emprego (SINE) é um atendimento público voltado à intermediação entre trabalhadores e empregadores, atendendo todos aqueles interessados em acessar os trabalhos disponibilizados. Além do Sine, o local dispõe de assistências para seguro-desemprego, criação e ampliação de currículo, capacitação para profissionais (cursos, treinamentos e programas de qualificação), dentre outros, com o intuito de incluir as pessoas em uma vaga de emprego.
A coordenadora do Sine – RR Emelly de Almeida Campos menciona as parcerias que a instituição mantém com outros locais a fim de facilitar o contato com os migrantes e a proposta de atividades que sejam de interesse daquele público, como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA) e o Jesuítas Brasil, que oferece apoio a migrantes e refugiados por meio do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR).
Além disso, Emilly destaca a implementação de idiomas como o espanhol para os trabalhadores da Setrabes, com o intuito de facilitar a compreensão e atendimento para aquele que não se comunica em português:
“Os trabalhadores fizeram curso de espanhol, eles conseguem se comunicar nesse idioma. Eu não consigo me comunicar tanto, mas eu preciso me fazer entender também, eu sempre vou tentar me comunicar”, afirma.

Apesar das oportunidades, uma questão levantada é a burocracia por trás da documentação do país de origem dos migrantes e os processos envoltos de validação para o Brasil. O governo brasileiro estipula a necessidade da legalização e tradução dos registros por meio de um tradutor público juramentado.
“Muitas documentações estão lá na Venezuela, por exemplo, eles não conseguem as transcrições para o Brasil, que é preciso transcrever tudo. E parece que precisa de um atestado daqui e é muito caro”, menciona Emelly.
Jocilene Cardoso, coordenadora de qualificação da Setrabes menciona a dificuldade que esses trabalhadores enfrentam neste processo e como eles precisam se adaptar a outros empregos para se sustentarem:
“Se eu vier de outro país, quantos médicos, até mesmo advogados hoje estão trabalhando como mestre de obra? Infelizmente, eles têm que se submeter”, explica.
Alguns dos documentos necessários para ingressar no Sine – RR podem ser encaminhados por meio de auxílio pela própria Setrabres. Apesar disso, alguns documentos ainda são obrigatórios e cabe ao candidato recorrer à retirada da papelada.

Obstáculos nas buscas por emprego
Alba Gonzalez é uma migrante venezuelana que trabalha atualmente, como intérprete e tradutora. Ela falou da experiência para se inserir no mercado de trabalho no Brasil, pois inicialmente, apesar de diversos envios de currículos por parte dela e do marido, não recebia chances. Chegou a conseguir um trabalho, mas traduzindo textos para um jornal de Londres enquanto morava em Roraima.
Começou a trabalhar dentro da Operação Acolhida e metade do dinheiro que recebia com este emprego acabava sendo utilizado para pagar a profissional que cuidava de seus filhos na sua ausência. Após um tempo a tradutora percebeu que o tempo que passava exercendo o serviço e o salário recebido, não compensavam frente a esse tipo de gasto.
“A gente trabalha para sobreviver, principalmente com filho. Trabalha para tentar trabalhar de novo”, afirma Alba.
Durante a busca por emprego, geralmente recebia ofertas de vagas para auxílio em algo como cozinhas, serviços gerais ou estoquistas, com salários que não seriam suficientes para a renda da família. Enxergava o que parecia ser uma resistência de empregadores brasileiros em oferecer aos migrantes vagas que fossem para cargos de liderança, um gestor.

Ao repassar sua trajetória, relata que o principal ponto dentro de sua jornada foi o fato de não poder fazer praticamente nada sem suporte.
“Eu não tenho família aqui, tinha uma babá comigo, mas ela foi para Venezuela. Minha filha mais velha é autista e a mais nova tem 4 anos. Tenho que ficar aqui e me virar dentro das minhas condições”.
A situação que viveu, e ainda vive em alguns momentos, a faz refletir sobre muitas outras mulheres que estão dentre as figuras dessa migração, e precisam passar por situações semelhantes, com empecilhos diários na busca por um caminho que leve a algo melhor para si e para os filhos.
A professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR) Norah Shallymar Gamboa é venezuelana e migrante em Roraima há mais de vinte anos. Apesar de seu vínculo com a universidade, ela relata não possuir, assim como muitas outras pessoas que deixaram seu país de origem para viver no Brasil, uma segurança de emprego, pois as oportunidades de participação em projetos e planos dentro da instituição são limitadas, e são, em sua maioria, relacionadas ao fato dela ser migrante. Segundo ela, as oportunidades de trabalho para migrantes enfrentam muitas dificuldades, tanto burocráticas quanto sociais.
“Não é fácil, você não vai conseguir um, não é um emprego com uma carteira de trabalho definida. Acredito que no último estado onde as pessoas tinham trabalho migrante, apenas 10% tinham um emprego permanente, e nesses 10%, quase ninguém tinha uma carteira de trabalho definida. Quer dizer, desse número de pessoas, são 80.000, e apenas 10% têm um emprego estável. E dessas, nem todas têm uma carteira de trabalho definida. É o que temos no último censo e as últimas medidas que tomamos para trabalhar com migrantes. Em outras cidades, talvez seja diferente. Por quê? Porque há mais oportunidades de emprego do que aqui”, expõe Nora.

Uma circunstância relatada pela docente é as condições nas quais as pessoas chegam ao Brasil. Muitos indivíduos chegam ao país com expectativas de acessibilidade ao emprego formal, realidade que é contestada por Nora. A noção passada é a de dificuldade para se enquadrar no mercado de trabalho brasileiro, já que muitos processos de profissionalização feitos nos países originários dos migrantes não são reconhecidos no processo de candidatura, fazendo com que os profissionais não consigam atuar em suas áreas de qualificação.
“Os pequenos [migrantes] vêm para cá, e a burocracia no Brasil é muito trabalhosa. Eu tenho doutorado e estou aqui há mais de 20 anos. No meu caso, é aceitável porque sou daqui, tenho um diploma daqui, então isso já é uma vantagem. Quanto mais vantagens, melhor. Eu entro aqui [na UFRR], mas não consigo entrar em outro concurso público porque não sou naturalizada e nem quero ser. Eu tenho um filho, ele já tem 25 anos e está estudando aqui. Eu poderia me naturalizar brasileira, mas eu não quero. Eu não quero me naturalizar brasileira porque a situação me obriga”, descreve a docente.
Em muitos casos, mesmo quando essas pessoas se deparam com a incapacidade de se manterem na cidade elas não conseguem retornar para seus países de origem por muitas vezes terem se desfeito dos seus bens em busca de uma oportunidade nesse novo ambiente. Tendo em vista o custo de vida que Roraima apresenta, a solução para muitos é o trabalho informal, que se mostra uma solução menos burocrática e entendível para aqueles que não conseguem o acesso adequado às condições de estabilidade no estado.
Outra questão que atinge diversas pessoas que estão tentando se manter no setor de trabalho é a idade. Para Nora, o etarismo é algo que influencia na dificuldade de migrantes a partir dos 50 anos a conseguirem um emprego estável, pois a contratação dessa faixa etária é raramente feita pelos contratantes.
Os fatores que impedem a plena procura de um emprego que mantenham a qualidade de vida desejada são a falta de preparo de Roraima em se adaptar a uma nova realidade migratória na região, que já se destaca por possuir grandes comunidades de migrantes e refugiados. E o estado não estabelece meios eficazes para a inclusão dessa população na sociedade, como a criação de auxílios, a inclusão de medidas de inserção social como a aplicabilidade de idiomas frequentemente pertencentes a migrantes e a criação de meios para facilitar e reconhecer a documentação nativa daqueles que buscam uma vida mais segura.
