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A memória urbana e as transformações nos bairros mais antigos de Boa Vista: São Pedro, Centro e Aparecida.

Entre a fé, o rio e a lembrança: a história dos bairros mais antigos de Boa Vista.

Por Vinícius Santos Picanço


Vista aérea de Boa Vista (RR). Foto: Acervo Maurício Elias Zouein
Vista aérea de Boa Vista (RR). Foto: Acervo Maurício Elias Zouein

Onde o passado ainda mora


Ao passear pelo Centro de Boa Vista, você já deve ter notado alguns muros pixados, sons de buzinas tocando e indicando um trânsito agitado. Pessoas dentro dos ônibus aglomeradas rumo aos seus trabalhos. Você escuta o som das portas das lojas se abrindo, sente o cheiro do café sendo vendido por um ambulante na esquina. E se anda pela Avenida Jaime Brasil,já deve ter notado os casarões históricos em meio a tantas lojas comerciais. 


Descendo um pouco mais, você chega a Orla Taumanan e logo à frente dela está a Igreja Matriz, sem se dar conta que ali foi o ponto inicial da história de Boa Vista.


As ruas carregam marcas históricas que resistem ao tempo. Boa Vista, hoje conhecida como a “capital da primeira infância” (e dona da maior paçoca do mundo), não tinha um plano urbanístico até a década de 1940, ou seja, essa história de bairro ainda não existia. Foi só a partir do trabalho do engenheiro civil Darcy Aleixo Derenusson que surgiu o famoso traçado em forma de leque como forma de expandir o território de Boa Vista. E não, a cidade não foi inspirada em Paris.


Antes disso ter acontecido, Boa Vista era apenas um lavrado e terra seca. “Antes de virar cidade, Boa Vista era lavrado. Essa vegetação típica do Norte, também chamada de cerrado, era marcada por árvores baixas, clima seco e solo duro. Era esse o cenário natural onde tudo começou.” conta Haroldo Scacabarossi, professor de Geografia da Universidade Estadual de Roraima.


O traçado da cidade


Maquete do traçado urbano de Boa Vista, 1944. Foto: Acervo de Darcy Romero Derenusson
Maquete do traçado urbano de Boa Vista, 1944. Foto: Acervo de Darcy Romero Derenusson

A partir de 1944, quando o capitão Êne Garcez desembarcou em Boa Vista, as únicas coisas que havia no local eram o Hospital Coronel Mota, Escola Lobo D’Almada, um hotel e a Igreja Matriz. 


A capital de Roraima também foi inspirada em modelos urbanísticos de cidades planejadas, como Belo Horizonte (MG). Só de 1946 a 1950, Darcy planejou o formato de leque porque ele sai do Centro Cívico, e se espalha em direção aos bairros, seguindo linhas retas e largas. Quando você estiver na “bola do centro’’, observe as avenidas Ville Roy, Glaycon de Paiva, Benjamin Constant, todas seguem um mesmo padrão. Segundo o doutor em História Social Maurício Zouein, esse formato tinha uma função prática e estratégica: “As ruas largas não eram para o futuro. Eram para tanques. Era um projeto militar.” 


Imagem: acervo Maurício Elias Zouein
Imagem: acervo Maurício Elias Zouein

Centro de Boa Vista: um berço cultural 


Avenida Jaime Brasil na década de 40 à esquerda, à direita nos dias atuais. Foto 1: Acervo Secult. Foto 2: Vinícius Picanço/arquivo pessoal 
Avenida Jaime Brasil na década de 40 à esquerda, à direita nos dias atuais. Foto 1: Acervo Secult. Foto 2: Vinícius Picanço/arquivo pessoal 

O bairro Centro é um dos mais tradicionais e simbólicos. Suas avenidas largas, como a Jaime Brasil e a Ville Roy, receberam o planejamento urbanístico em leque, o que expandiu a cidade. Ali estão marcos da memória urbana: a Igreja Matriz, a antiga Casa da Cultura (hoje Academia Roraimense de Letras), a Praça do Centro Cívico, a Biblioteca Pública e as escolas mais antigas, como Lobo D’Almada e Oswaldo Cruz. 


"Boa Vista não tem lugar de memória. Tem lugar de lembrança", resume Zouein — e é justamente no Centro que essas lembranças continuam tentando resistir. 




Célio Macedo da Fonseca, trabalha na antiga Casa da Cultura, onde funcionava hoje a Academia Roraimense de Letras, um referencial histórico que fica na avenida Jaime Brasil, bairro Centro. Ele confirma que o antigo Rói Couro (conhecido hoje como bairro Caetano Filho) corresponde à área onde hoje está o bairro São Pedro.


“Ainda hoje, entre Alfredo Cruz e Coronel Mota, há um núcleo de pessoas descendentes dos primeiros moradores daquele bairro que se chamava Rói Couro”, contou.


Onde a fé virou bairro


Se hoje o bairro Aparecida tem esse nome, não é por acaso. Assim como São Sebastião, São Francisco, São Pedro, a história da cidade está diretamente ligada à presença da igreja católica. O professor Maurício Zouein explica: “Naquele momento da história, nós não tínhamos bairros com nome. As pessoas diziam: ‘lá na igreja de Nossa Senhora de Aparecida’, ‘lá perto da igreja de São Bento’.


Paróquia Nossa Senhora Aparecida. Foto: Vinícius Picanço / Arquivo pessoal
Paróquia Nossa Senhora Aparecida. Foto: Vinícius Picanço / Arquivo pessoal

Com o tempo, esses espaços foram ganhando o nome da própria igreja. “Os eventos que aconteciam na cidade ocorriam ao redor da igreja, as formaturas escolares, quermesses (festas religiosas) as recepções de pessoas célebres, as festas aconteciam naquela região em torno daquela comunidade.’


De acordo com o historiador, esse convívio permitiu que nascesse o sentimento de identidade e de pertencimento. “A quermesse da Matriz competia com a do São Francisco. Cada comunidade fazia o melhor possível. E é nessa disputa simbólica que surge o ‘esse é o meu bairro’.


O pároco da Catedral Cristo Redentor, Mauro Maia, reforça a ideia: “Os bairros mais antigos, assim como a própria cidade de Boa Vista, sobretudo no que diz respeito ao seu centro, cresceram ao redor da igreja”, explica padre Mauro Maia, pároco da Catedral Cristo Redentor.


Rua Dona Clô. Foto: Vinícius Picanço / Arquivo pessoal
Rua Dona Clô. Foto: Vinícius Picanço / Arquivo pessoal

Segundo ele, entre as décadas de 1930 e 1940, as comunidades religiosas começaram a se formar de maneira mais organizada. Eram nas igrejas que as famílias se reuniam, criavam laços, partilhavam a fé e construíram as bases do que hoje são os bairros mais tradicionais da capital.


“A história dos bairros se confunde com a história das comunidades. Foi a partir da frequência na comunidade, que era uma opção de convivência, de conhecimento das pessoas e relações , que os bairros e as famílias se juntaram e deram início à cidade.”


Com o tempo, outras formas de convívio social surgiram e a igreja deixou de ser o único espaço de encontro. Mesmo assim, a fé permanece se fortalecendo. Ainda hoje, a igreja segue como referência afetiva e simbólica para muitas famílias dos bairros antigos.


O comerciante André Lucas Barbosa, dono de uma loja de artigos religiosos na frente da Igreja Aparecida, acredita que o impacto da fé no bairro vai além da religião.


“O nome do bairro é Nossa Senhora Aparecida. Muita gente nem lembra disso. Mas é uma homenagem à padroeira do Brasil. E agora vamos ter o primeiro santuário dedicado a ela no Norte do país.” Ele acredita que a construção do novo santuário pode transformar o bairro:


“A fé não é só uma questão espiritual. Quando se constrói um santuário, vem gente, vem comércio, vem emprego. É um desenvolvimento integral.” Completa.


No fim, o padre Mauro reforça: “Nos bairros mais antigos do centro, as famílias tradicionais ainda vivem em torno da igreja, que continua sendo referência de convivência e fé.


Das calçadas às telas: os encontros que mudaram


Teve um tempo em que os bairros eram feitos de encontros. As crianças jogavam bola ou peteca no meio da rua, enquanto as mulheres conversavam nas calçadas e os homens, como diz Maurício Zouein: “fofocavam por ali mesmo. Quando dava 18h, às pessoas usavam bomba fit e veneno para espantar os carapanãs de dentro de casa, todos eram obrigados a sair”. As ruas eram espaços de convivência.


Mas isso mudou. O cheiro da bomba de flit, extremamente forte foi trocado pelo SBP (inseticida), e o barulho das vozes, pelas notificações no celular. “A religiosidade humana não é mais tão forte. As pessoas não se encontram mais... agora é Facebook, Twitter, X, sei lá o que que é”, comenta Zouein.


O pároco Mauro Maia também sente esse distanciamento: “Hoje o contexto é outro. A igreja não é mais o único ponto de referência de convivência. As redes sociais e relações virtuais meio que descaracterizam essa questão mais presencial.”


Rói Couro: o bairro batizado pelos cachorros


Primeiro conjunto habitacional na década de 40. Foto: Darcy Aleixo Derenusson 
Primeiro conjunto habitacional na década de 40. Foto: Darcy Aleixo Derenusson 

Alguns nomes de “bairros’’ surgiram da boca do povo… ou para falar melhor, da boca dos cachorros. Um dos primeiros conjuntos habitacionais de Boa Vista foi construído às margens do Rio Branco, onde conhecemos como “Beiral’’, ou “Caetano Filho’’.


Eram pequenas casas feitas de barro cobertas com palha. O professor de geografia da UERR, Haroldo Scacabarossi, nos explica o motivo dessas ocupações terem sido feitas do lado direito do Rio Branco. “Boa Vista se desenvolveu na margem direita do Rio Branco, onde o solo era mais seguro, era um local onde a chuva não alagava.


O lado esquerdo era plano e alagava muito quando chegavam os períodos chuvosos. Isso influenciou diretamente o rumo da expansão urbana, que seguiu principalmente para a zona oeste.” E assim seguiu um modelo de ‘urbanização’.


Como o Beiral ficava na beira do rio, ali funcionava um mercado de pesca de ribeirinhos, pelas redondezas também trabalhava-se com couro de boi, a história de Boa Vista também está atrelada ao mercado bovino. Exportava-se muito gado para o Amazonas.


Como não havia portas e nem janelas nas casas, alguns moradores usavam couro de boi com um pedaço de madeira furando-o e usando como porta,  isso porque era mais barato. Quando chovia, o couro molhava e o forte vento levava o cheiro, atraindo os cachorros. Eles mordiam as pontas das “portas’’ porque era até onde eles alcançaram. E foi aí então que surgiu o nome do bairro “Rói Couro’’. 


O que ainda vive nas ruas antigas


Foto: Marina Meu Caso, bairro São Pedro. Vinícius Picanço/Arquivo pessoal
Foto: Marina Meu Caso, bairro São Pedro. Vinícius Picanço/Arquivo pessoal

No bairro São Pedro, às margens do Rio Branco, a memória também resiste, não pelas ruas ou monumentos históricos, mas pela fala de quem viu o bairro crescer. O comerciante Stanley, mais conhecido como “Boboco’’, dono do restaurante Marina Meu Caso, mora ali há mais de 30 anos. O lugar também serve de ponto de travessia e passeios de lanchas e jet skis.


“Naquela época, não tinha asfalto. A energia ia embora às 10 da noite”, lembra ele. Hoje, o ponto onde funciona seu restaurante se transformou em lugar de encontros: “De manhã e de tarde, toda hora chega gente. Aqui é o foco, todo dia.” Completa.


Mas não é só comida que sai da cozinha. O que sobra vai para quem precisa. “A gente não joga fora. A gente dá para quem está com fome.” Conta o comerciante.


O restaurante se tornou parte da paisagem e da vida do bairro, um espaço onde a cidade vive, funcionando como um ponto turístico.


Rua Miguel Lupe Martins, bairro São Pedro. Foto: Vinícius Picanço/Arquivo pessoal
Rua Miguel Lupe Martins, bairro São Pedro. Foto: Vinícius Picanço/Arquivo pessoal

Pelas ruas do bairro São Pedro, é possível notar diversas ladeiras, ruas estreitas e um local cheio de árvores e um comércio local bem agitado, uma região repleta de natureza. Enquanto por este bairro, notei a grande movimentação de carros carregando lanchas e jet skis, rumo ao Rio Branco.


Caminhando por esse bairro, subindo pelas ladeiras enquanto suava por conta do estridente calor de Boa Vista, dobrando em cada curva acentuada característica do bairro, eu notei uma movimentação de pessoas dirigindo seus carros rumo ao porto do Marina Meu Caso. Carregando suas lanchas e várias famílias fazem uso do espaço de forma fiel.


As pessoas utilizam o espaço à beira do rio como uma forma de encontro, algo que já se perpetua há décadas. O que um dia foi o início de um bairro, hoje movimenta a cultura e a economia.


À beira do rio, o espaço funciona como área de convivência, um hábito que se repete há décadas. O que começou como uma ocupação simples e silenciosa, hoje impulsiona a cultura, a economia e a memória viva de Boa Vista.


Uma benção mitológica à Igreja Matriz


Igreja Matriz Nossa Senhora do Carmo. Foto: Vinícius Picanço / Arquivo pessoal
Igreja Matriz Nossa Senhora do Carmo. Foto: Vinícius Picanço / Arquivo pessoal

Uma curiosidade que talvez você não saiba: a Igreja Matriz de Boa Vista, que está no bairro Centro, é a única da cidade construída de frente para o rio. Isso não é por acaso. Em Portugal, era comum erguer igrejas voltadas para o mar, como um gesto simbólico de bênção aos navegadores que partiam em expedições.


Segundo a tradição, os portugueses se consideravam descendentes de Ulisses, herói da mitologia grega que, após navegar pelos mares por dez anos depois da Guerra de Tróia, encontrou uma terra fértil e bonita.


Fascinado pelo lugar, teria chamado o local de Ulisses Bona, a Terra Boa de Ulisses. Com o tempo, o nome teria se transformado em Lisboa.


Igreja Matriz Nossa Senhora do Carmo. Foto: Vinícius Picanço / Arquivo pessoal
Igreja Matriz Nossa Senhora do Carmo. Foto: Vinícius Picanço / Arquivo pessoal

"As igrejas em Portugal são construídas de frente para o mar como forma de abençoar os navegadores. Boa Vista não tem mar, então construiu-se a igreja de frente para o Rio Branco." Conta Zouein.


Foto 1: acervo Maurício Zouein. Foto 2: Vinícius Picanço / Arquivo pessoal
Foto 1: acervo Maurício Zouein. Foto 2: Vinícius Picanço / Arquivo pessoal

O que a cidade ainda guarda


De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), hoje Boa Vista possui aproximadamente 470.169 habitantes, a capital tem 56 bairros que se dividem em zonas: Zona Norte, Sul, Oeste e Leste. Vários desses bairros nasceram sem planejamento.


“A necessidade de estruturar o crescimento urbano sem comprometer a qualidade de vida dos munícipes exige compromisso com práticas socioambientais e mobilidade urbana.” explica Haroldo, professor de geografia.


O seu Stanley, conhecido também com ‘Boboco’, vive ali há décadas. Sentado à beira do rio, em frente ao restaurante que ele mesmo ergueu, olha para o outro lado da cidade como quem vê lembranças passando.


“A Praça da Bandeira... mexeu. Os canhões ainda estão lá. Mas o resto sumiu. Ninguém sabe onde foi parar. Aqui tinha a primeira máquina de arroz. Um parque de exposições. Festa, gente, movimento...” “Tá tudo diferente, a cidade cresceu demais”


Boa Vista é lugar riquíssimo em cultura, com uma história curiosa, podemos descobrir mais dela instigando mais ainda nosso senso crítico. É preciso cultivar e respeitar sua história que carrega suas características únicas, é bom descobrirmos mais para valorizar ainda mais aquilo que é nosso.


Todos esses lugares carregam simbolismo, cultura, história e fé,e os seus espaços precisam ser preservados.


 
 
 

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